“Agora que está de mulherzinha nova, ele quase não sai!”
A frase, sem querer entreouvida no balcão dos pastéis da feira de domingo, chamou minha atenção para o par de cavalheiros em animada conversa regada a refrigerantes e – claro! – pastéis, em pé no canto do balcão improvisado. Um dos indivíduos, de costas, ostentava um bom par de bermudas azuis e um par de bons sapatos, o que me permitiu julgá-lo um profissional liberal. O outro sujeito, o autor do comentário, de frente para mim, enfeitava a recém-enunciada frase com um sorriso de connaisseur, tipo, “você sabe bem do que eu estou falando!”
Disfarçando meu interesse tentei continuar ouvindo a conversa, mas a discrição do sujeito das bermudas azuis, que com voz bem mais baixa pegou a conversa daquele ponto em diante, me impediu de saber mais do amigo da dupla, o que estava de “mulherzinha nova”. Esperando meu próprio pastel – um de palmito quase pronto prá sair da fritura em mais alguns instantes – sem querer comecei a divagar sobre o poder e o impacto da “mulherzinha nova” na vida de um homem.
Alí estava provavelmente o caso de um homem que antes da mulherzinha nova, quando ainda estava com a mulher velha, deveria sair bastante com os amigos, a turma dos confrades. Quem sabe ele até não costumava frequentar a pastelaria da feira todos os domingos para discutir a vida do grupo e de cada um, observar mulheres novas e velhas a passar com suas sacolas de verduras, legumes e frutas – e mesmo as que paravam para um pastel? Qualquer coisa menos ficar com a mulher velha. Tinham se acabado as novidades. “Preciso ir senão minha velha me xinga”, diria ele aos amigos depois de uns dois pastéis. E lá ia ele embora, cabeça baixa, antecipando a comida caseira de todos os domingos espalhando cheiro sem novidades na casa toda. Passaria a mão no cabelo, a testa meio franzida, “É... o que é que se há de fazer”. E como um condenado apreciaria o almoço com aquele temperinho já de há muito conhecido, mastigaria opiniões aqui e alí sobre assuntos que a mulher velha traria – ou quem sabe a família reunida em volta da mesa, como sempre? – e encerraria o almoço numa nota de cansaço: “Quem está jogando hoje?” E lá se ia, jogar-se no sofá, controle remoto em punho, achar o futebolzinho de domingo que ninguém é de ferro. Logo estaria roncando. A mulher velha, ajudada pelas outras mulheres velhas da família se encarregaria de tirar a mesa e arrumar a cozinha
Onde teria ele conhecido a “mulherzinha nova”? No escritório? Na rua? Apresentada pelos amigos? Talvez na feira, alí mesmo naquela pastelaria improvisada, num domingo, quando ao fim do segundo pastel, ele notou aquela bonequinha cheia de curvas e de animação. Olhares gordurosos, gulosos, foram trocados. Onde quer que tenha se iniciado, o affair todo foi um sabor novo, diferente, e tão gostoso em sua vida! Aquilo sim é que era tempero para a vida, não aquela mesmice já fatigada pela familiaridade. Devagarzinho o flerte cuidadoso virou conversa, que virou paquera, que virou namorico escondido – tão mais excitante! – e desembocou num caso muito sério. Tão sério que virou fofoca, daí virou assunto de vizinhança, e finalmente chegou aos ouvidos da principal, que não gostou nadinha do que ouviu.
Muito choro, muita mãe de santo, muita discussão de altas horas, muito briga-e-volta depois, a que perdia o posto levou o chute de misericórdia, e a nova passou a usufruir daquela mesma atenção, daquele mesmo romance que um dia cativara a que acabava de sair. Era ela quem agora enfeitava o braço do fulano, nas raras vezes em que eram vistos na rua. Estavam muito ocupados deleitando-se do recém-descoberto amor-para-sempre, construindo as memórias das quais ela iria para sempre se lembrar.
O pastel chega e me tira do devaneio. Olho a dupla de amigos agora trocando confidências em tom bem mais baixo – pena que não consigo ouví-los. Sem alternativa, pego meu pastel com cuidado – tão quente! - e saio andando pela feira ainda tentando imaginar a boazudice da “mulherzinha nova”. À minha volta, na feira, mulheres novas, velhas, acompanhadas, desacompanhadas, passavam seu domingo de manhã talvez pensando nos cardápios que sairiam de suas sacolas. Quantas delas eram também “mulherzinhas novas” na vida de seus homens? Quantas teriam sido, um dia? Quantas quiçá ainda se deleitavam da atenção completa de um homem que as acabara de descobrir como o grande amor de suas vidas? Quantas – entre as desacompanhadas – seriam a mulher velha de alguém, aquela que já não serve, passada prá trás, substituída por uma encantadora nova aquisição? Quantas – mesmo que velhas – seriam ainda mimadas e amadas por um bom homem, que ainda veria nelas o encanto dos primeiros dias? Ou será que não existe isso, quer dizer, mulher acaba sempre ficando velha para o seu homem?
O recheio gostoso do pastel, os cheiros, as cores e os sons da feira eram otimistas por natureza, e resolvi acreditar que tudo era possível para as demais mulheres à minha volta: o ruim e o bom, o novo e o velho, a alegria do novo romance e o recuperar-se do velho romance, e também o encontrar-se o novo, no outro ou em si mesmo, sempre. O ritmo da feira, previsível, sempre lá, mas também sempre trazendo o novo, o recém colhido e achado das hortas e pomares, uma tradição brasileira, que tem também o ritmo das possibilidades sempre renovadas.
Possibilidades renovadas para aquele desconhecido da dupla de fregueses da pastelaria. E possibilidades renovadas para os universos de mulheres velhas e novas que gostariam muito de ter rédeas mais seguras de seu destino amoroso, mas que continuam valentes, laboriosas, relevantes, e renovadas, apesar de tudo.