O conceito de cidadania é a noção radical de que ao mesmo tempo em que pertencemos a uma cultura, a uma sociedade, a um país, temos simultaneamente direitos e deveres para com ele. Temos o direito de sermos protegidos e termos nossa propriedade salvaguardada contra destruição natural ou daquela promovida por criminosos ou invasores; temos o direito de acesso a educação, saúde e sanidade, trabalho, dignidade, e a participar das decisões que incluem nosso destino nelas. Por causa desse último particularmente é que podemos votar, e até precisaríamos participar mais em plebiscitos, consultas dos políticos com relação às leis que nos governam. Numa verdadeira democracia, os cidadãos votam em todas as instâncias em que alguma ação pública pode impactar sua vida diária. Por exemplo, o governo pensa em fazer o embelezamento (plantio de flores e árvores, pintar meio-fio, etc.) de uma grande avenida. Acontece que em volta daquela mesma avenida, no bairro ali em volta, há outros problemas que precisam de resolução. Por exemplo: o bairro precisa de mais uma escola, ou, há muitas ruas esburacadas, ou, não há linha de ônibus conectando o bairro ao centro da cidade. Numa democracia, uma vez que os gastos são feitos com o dinheiro do povo (que contribuímos compulsoriamente através dos impostos), o povo é quem tem que decidir, através de votação, plebiscito, plenário, de alguma maneira, o que é que prefere que seja feito: o embelezamento da avenida, ou o conserto dos buracos, ou a linha de ônibus. Não há dinheiro para tudo, mas há prioridades. Quem as decide é o povo. Esses são os direitos dos cidadãos.
A cidadania, entretanto, implica também em deveres. Essa parte costuma ficar um pouco esquecida aqui no Brasil, e até dá prá entender um pouco a razão. Acostumados à situação de “terra de ninguém”/ “salve-se quem puder”/ “o importante é levar vantagem em tudo, certo?” que isso aqui virou na mão de tantos e tantos políticos desonestos, que se protegem e enriquecem com o dinheiro e a propriedade pública enquanto abandonam a população que os elegeu, realmente estamos sempre pedindo e reclamando de algo que “eles” não fizeram. O “eles” (indeterminado, mas significando os poderosos, os governantes, o governo) estão sempre a fazer algo errado (em benefício próprio) ou a não fazer algo que precisa ser feito (geralmente algo que seria em benefício do povo ou do País). Não conseguimos nem imaginar o que mais que pode ser exigido de nós, os cidadãos, que já enriquecemos tanto todos os políticos, e tivemos tão pouco em retorno.
Na verdade, não estamos fazendo nosso dever. Explico. O dever, as obrigações dos cidadãos numa democracia são muitas, e são todas muito relacionadas com participar de todo e qualquer processo ou ação que impacte na nossa vida e nas dos demais habitantes, por exemplo:
1. Votar
2. Ajudar aos mais pobres
3. Ensinar algo que a gente saiba a quem não sabe
4. Proteger as pessoas que precisam de ajuda, tipo, criancinhas perdidas ou abandonadas, pessoas velhas, doentes ou fragilizadas, aqueles que se machucam no meio da rua
5. Manter a propriedade pública viável a todos. Aqui se inclui não jogar lixo na rua (nem pela janela do carro), pegar a caca de seu cachorro, não obstruir o caminho dos demais passantes (pedestres ou carros), não rabiscar as paredes das casas dos outros ou de edifícios públicos
6. Dirigir de uma maneira que respeite o direito dos demais de compartilhar com você a via pública, o que inclui andar na velocidade permitida (não muito abaixo nem muito acima), sinalizar quando for mudar de faixa ou virar, usar as faixas adequadamente (esquerda para ultrapassagem, direita para marcha mais lenta); não estacionar onde não é permitido; não dirigir alcoolizado ou sob influência de drogas para não arriscar a vida dos outros cidadãos, manter seu carro de maneira a não soltar muita fumaça que polua o pulmão das outras pessoas ou mesmo impeça a visão dos outros; não parar o carro no meio da rua para conversar com os amigos impedindo o fluxo do tráfego; etc.
7. Não gastar recursos que são de todos (tipo, esbanjar água lavando calçada, puxar eletricidade ilegalmente)
8. Inclui enfim qualquer ato ou omissão que prejudique ou atrapalhe os direitos das outras pessoas. Aquela frase sábia: “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro”, é um jeito simples e ao mesmo tempo profundo de exemplificar cidadania.
De qualquer maneira que se olhe, cidadania implica accountability. Accountability é uma palavra da língua inglesa, que não tem tradução exata em Português, mas que significa a obrigação de prestar contas, de ser responsável pelo que nos comprometemos ou dizemos que vamos fazer. A Wikipedia menciona “responsabilização” como um possível significado, e sugere que accountability é uma palavra que se refere a um conceito ético ligado à responsabilidade social (que todos nós temos), incluindo a obrigação de informar e explicar aquilo que fazemos na interface pública. Vou sugerir que accountability possa se aproximar de fato do significado de “responsabilidade”. Ser “accountable” então é ser responsável pelos seus atos, responder por eles.
Parece grande, não é? Parece uma tarefa imensa, muito trabalho, ser cidadão. Permitam-me sugerir um lugar para começarmos: vamos evitar largar carrinhos de compras em estacionamentos, no meio dos carros (e atrapalhando-os). Que tal se procurarmos levá-los até um canto, onde não atrapalhem a manobra de ninguém, o entrar e sair dos carros e o movimento deles nos estacionamentos da vida. Não largá-los bem na frente (ou atrás) de um outro carro. Não ligar o “dane-se” que alguém não vai conseguir manobrar com nosso carrinho bem na frente. Não. Refiro-me a ser “accountable” pelo nosso gesto completo. Ser cidadão. Pelo menos nisso. Mesmo que isso implique em andar mais um pouco. É pouco, é quase que pueril, mas pode ser uma semente de cidadania que estamos plantando. É um jeito de pensarmos como uma comunidade, como um grupo de cidadãos compartilhando espaço, direitos e deveres uns com os outros. É um pequeno passo....mas pode ser o primeiro de muitos e maiores.