segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Nos bondes da vida

Regras de comportamento em transportes públicos:
1- Os encatarrados não devem tossir mais do que três vezes por hora, nem pigarrear mais do que quatro vezes nesse mesmo período. Além desse número, devem ir a pé ou ficar em casa;
2- O passageiro só poderá manter as pernas abertas se pagar pelos assentos ao lado;
3- Só é permitido narrar assunto íntimo se o passageiro ao lado concordar em ouvi-lo;
4- Quem fala cuspindo só deve sentar-se no banco da frente;
5- Se duas pessoas sentadas à distância quiserem conversar em voz alta, devem se limitar a não mais de 15 ou 20 palavras, tendo o cuidado de não usar palavrões ou termos maliciosos

Em 1883 essas eram algumas das sugestões bem humoradas de Machado de Assis aos usuários do transporte coletivo da época – o bonde - publicadas em uma crônica famosa chamada Como comportar-se no Bond (escrito assim mesmo, sem o “e” final). Quiséramos nós nossas preocupações atuais fossem as mesmas de Machado, nos transportes coletivos atuais ou nas ruas e escritórios, onde compartilhamos espaço com os demais habitantes do planeta.
Senão, examinemos a seguinte cena. Metrô lotado em São Paulo (ou ônibus cheio em Ribeirão Preto. A situação se aplica aos dois contextos). Temperatura “invernal” de 30 graus. A onda de calor traz, em pleno inverno, uma lembrança não saudosa do verão: as calças femininas de cintura bem baixa. Sentada no banco onde estou, meus olhos ficam no mesmo nível do útero de uma jovem, separado de mim por poucos milímetros de pele, gordura, e tecido intersticial. Se o ônibus balançar demais, meto o nariz na barriga da moça. Coisa que de maneira nenhuma me atrai.
Olho para outros bancos com esperança, mas a situação é a mesma: úteros, úteros semi-expostos, proeminentes ossos pélvicos e pubianos, restos de depilação (ou, pior ainda, de falta de depilação), encimados por barrigas mais e menos gordinhas, e umbigos quase que invariavelmente com piercing de gosto duvidoso.
Do lado de trás a situação não é melhor: cofrinhos para quem quiser, de todos os formatos, tamanhos, cores, níveis de limpeza, ladeados exuberantemente por bolas de gordura que teimam em explodir das apertadas cinturas-baixas. E os cheiros. Meu Deus os cheiros!
E não vamos nos esquecer dos menos mal, mas nem por isso de melhor gosto, os ombros descobertos pelas blusas eternamente caídas que infelizmente ainda não caíram de moda. E tome sutiã na cara, alça suja, alça dobrada, pedaços de seio e barriga - pois as blusas ainda são meio curtas de um lado. Não importa se você está num estabelecimento comercial, num banco, num órgão público municipal, estadual ou federal: sujeite-se à visão não solicitada de corpos seminus se oferecendo numa eterna sensualidade descabida, mal localizada, e de péssimo gosto.
Quando foi que todos nós concordamos em ter um grau de intimidade tão grande com estranhos? Quem está nos ditando essa humilhação? Estamos praticamente esfregando nossos órgãos nas caras das pessoas, perfeitos estranhos, sem o menor pudor e respeito primeiro para conosco mesmas, e em segundo lugar, mas não menos importante, para com o próximo que, seguramente, não pediu esse contacto de pele, pelos e gorduras.
Mas o pior - e digo como mulher - não é nem isso. Sob a triste ilusão de que estamos nos liberando, de que mostrar o corpo é sinal do progresso feminino na eterna luta entre os sexos, estamos na verdade nos desvalorizando, nos transformando em pedaços de carne em exposição constante e indigesta, a alardear que nós, brasileiras, somos mesmo nada mais que corpos, [com sorte] bonitos e desejáveis. Andem nas nossas ruas, estrangeiros, vejam como nos oferecemos ao seu paladar: nossas barrigas e traseiros, nossos púbis, nossos ombros seminus que não lhes darão o menor trabalho nem de abaixar nossas blusas. Estamos sempre prontas a seduzi-los, quer vocês queiram quer não, em plena praça pública, em plena segunda-feira, em pleno banco, nas salas de aula, no meio dos negócios, das reuniões formais, das pessoas nas ruas. Estamos sempre disponíveis, prontas para “amar”. “Comigo é na base do beijo” sacode a música, e nós já saímos rebolando nossos úteros.
Imagino como Machado de Assis se referiria a esse gradual strip-tease público patrocinado pelas moças nacionais? “As barrigas e seios das senhoras e senhoritas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo coletivo. Não se proíbem formalmente os trajes da moda, mas com a condição de que esses não ofendam os princípios de decência e não imponham aos demais passageiros a visão de orgãos íntimos, principalmente se houver senhores.”
Olavo Bilac, em 1903, bem que tentou convocar a todos (hoje sabemos, sem sucesso) para a necessidade de educação e polidez quando em situações coletivas. “Ó bonde congraçador! tu fazes mais do que nivelar os homens; tu os obriga a ser polidos, tu lhes ensinas essa tolerância e essa boa educação, que são alicerces da vida social...” (BILAC, 1996: p. 326).
Aqui estamos 107 anos depois da sugestão de Bilac, o bond já aposentado, e nós cada vez mais amontoados em hordas seminuas nos ônibus, metrôs, calçadas, escritórios e repartições públicas . Vamos lá, mulherada, vamos exercer a liberdade de nos promovermos importantes e respeitadas, sem medo de perdermos o cargo ou a atenção do amado só porque não estamos mostrando nossas intimidades em público. Afinal, mostrar “as partes” em público só vai mesmo é atrair a atenção daqueles que não nos interessam, aqueles que só querem mesmo um pedaço de carne e não vão dar a mínima aos nossos sentimentos...

5 comentários:

  1. Que maravilha de argumento!
    A sorte é de, ainda assim, ainda que cada vez menos pudorosas, existam mulheres que pensa e reflitam como vc.
    :)
    "Vamos lá, mulherada, vamos exercer a liberdade de nos promovermos importantes e respeitadas, sem medo de perdermos o cargo ou a atenção do amado só porque não estamos mostrando nossas intimidades em público. "

    :**

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  2. Ana,

    que delícia de texto. Eu acho que as pessoas vivem confundindo as coisas: moral com moralismo, simpatia com intromissão, e vulgaridade com personalidade.

    Tomara que a gente consiga ter mais dircenimento.

    beijo

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  3. Como homem devo dizer: realmente. O tempo todo somos "provocados". Estamos sempre pensando em algo carnal. Digo isso um pouco preocupado, sinceramente. Traio a mim mesmo, meus sentimentos mais profundos, às vezes por causa do olhar. Aí me pergunto. Será que as mulheres sentem isso em relação a nós, homens? Será que um dia iremos nos expor a esse ponto? Será bom?

    Acho que não. Assim como não é bom para as mulheres também, como você disse.

    Acredito, dentro desse assunto, se me permite dizer, que a aparência sempre importa.

    Importa, sim, mas no fator primeira impressão quem disse que sexo é a primeira coisa que tem que vir à mente?

    E o sorriso? E o olhar? E o cabelo?

    Não bastam mais, estes aspectos, para os que acreditam na atração primária como visual?

    Ótimo texto.

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  4. Muito obrigada - demais! - a vocês que comentaram meu texto dessa e da semana passada. Precisa de uma linda alma para ser assim generoso(a). Que eu possa continuar merecendo sua leitura.
    Abraço enorme em todos.
    Ana

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  5. É o caso típico da confusão de liberdade com libertinagem.

    Bem comum por aí

    Excelente ponto de vista. Concordo com cada linha!

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